Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea (São Vicente: Edições Caiçaras, 2011) é uma antologia organizada por Marcelo Ariel que reúne sete autores jovens, que vêm publicando seus poemas em blogues, sites e revistas eletrônicas como Germina, Pausa e Zunái. A internet é o veículo mais atualizado e pluralista para a divulgação da poesia, e nela encontramos as vozes criativas e inquietantes de nossa produção literária, que chegam aos leitores sem a mediação dos cadernos culturais da imprensa diária, cujos critérios de escolha são influenciados pelo lobby das grandes editoras e pelas tendências hegemônicas na política literária. Não encontramos hoje veículos como o Jornal do Brasil dos anos 50, que contava com críticos como Mário Faustino, ou o Folhetim dos anos 80, que publicava resenhas de Paulo Leminski. Quem estiver em busca de informação estética nova ou de reflexão crítica atualizada perderá o seu tempo folheando as páginas da Folha de S. Paulo ou da revista VEJA, mas encontrará diferentes vozes, estilos, temas e mitologias criativas no ciberespaço.
Na apresentação da Pequena Cartografia, objeto artístico artesanal com o belo projeto gráfico elaborado por Márcio Barreto, o organizador da antologia diz: “A internet possui muito do artesanal e se harmoniza com práticas de edição como a desta Edições Caiçara, a internet é um esboço dos circuitos telepáticos do cérebro, trata-se da costura de fios visíveis e invisíveis. Nesta seleção que é uma pequena tentativa de realizar um recorte pessoal do que considero o mais representativo da poesia brasileira contemporânea, poemas de Marceli Andresa Becker, Katyuscia Carvalho, Lucila de Jesus, Ângela Castelo Branco, Maiara Gouveia e Daniel Faria formam este pequeno livro, pequena tessitura, que na verdade é a construção de um pensamento sobre a poética dos autores selecionados e sobre a minha própria poética, porque esta fronteira entre nós e os Outros foi a primeira a desaparecer quando alguém disse a palavra ‘Poeta’ pela primeira vez”.
O depoimento do autor, que reproduzimos aqui, merece destaque por desmistificar o suposto “distanciamento” ou “neutralidade” que alguns acreditam ser o princípio regulador de tais escolhas; nenhuma antologia é neutra, nenhuma é definitiva ou imparcial. Toda mostra é parcial, deriva de conceitos estéticos e critérios de gosto pessoal de quem a organizou. Longe de ser um pecado heurístico, peculiar às obras do gênero, a parcialidade é uma confissão de honestidade e de rigor intelectual, que não admite concessões: toda escolha de autores e textos criativos é uma operação crítica, é uma visão curatorial da produção literária de um período, e como tal deve tomar partido, sim, elencando os trabalhos de mais destacada elaboração estética, de acordo com os princípios teóricos, metodologia e grau de subjetividade do curador.
Todas as antologias são incompletas e sujeitas à discussão; por isso mesmo a existência de diferentes recortes críticos de um mesmo período histórico é enriquecedor, não apenas para a batalha de ideias, o confronto de diferentes teorias, mas também para a correção de eventuais exclusões, causadas, não raro, pelo desconhecimento. Não é possível avaliar todos os poetas de uma determinada geração sem um distanciamento temporal, para que o crítico possa consultar o conjunto da obra de cada autor, as revistas literárias publicadas na época, antologias, resenhas e outros textos que forneçam sinais luminosos sobre a produção do período. A empreitada de Marcelo Ariel é altamente arriscada exatamente por isso: ele se dispôs a fazer uma pequena cartografia do que se faz hoje pela mais nova safra de poetas brasileiros, quase todos sem fortuna crítica e inéditos em livro. Esta é uma intervenção cultural perigosa, e ao mesmo tempo excitante e necessária, que apresenta para nós um pequeno número de autores significativos, que trabalham a linguagem poética de modo consistente, rigoroso e inventivo.
Quase todos os poetas incluídos por Marcelo Ariel em sua breve antologia revelam um certo grau de hermetismo, derivado de leituras de Heberto Helder, Paul Celan, Lezama Lima e do Neobarroco: é o caso, por exemplo, de Daniel Faria (“Sangue / de espelho líquido. // Os intermináveis gestos / opacos / da cidade que se joga / sobre os meus braços”) e de Marceli Andresa Becker (“a fome que tenho se come / porque há saída nenhuma / na voz”). Pertencem a esta mesma linha criativa poetas como Andréia Carvalho, Diogo Cardoso, Adriana Zapparoli e Roberta Tostes Daniel, que mereciam estar incluídos neste volume.
O “artesanato furioso” (Marino) de nossa poesia mais recente tem revelado uma força semântica e imaginativa que contrasta com a lírica morna e insossa da linha coloquial-cotidiana, hegemônica nos cadernos culturais, que tem como ícone o livro Elefante, de Francisco Alvim, que recicla o poema-piada e o poema-crônica-de-jornal já exauridos em nosso Modernismo, quase um século atrás. Desafinando o coro dos contentes, a poesia jovem traz de volta as imagens fortes, ambíguas, monstruosas, os ritmos sensoriais, o léxico inusitado e a invenção sintática, levando a poesia para o seu terreno natural, o da encantação e do estranhamento. Quem tiver dúvidas de que a poesia é uma forma de magia, que leia com mais atenção os versos de Marceli Andresa Becker: “inviolado pelo espelho. / (mas se cantar / é cantar contra ouvido e pele, tempo de fibras, / mas se beleza é tu contra carne, / então cantar, cantar, pra te fazer / pedaços)”. Ou ainda, de novo, Daniel Faria: “só se for na beira da praia, lá dentro / a pura monotonia, os dentes da maresia, / que absolutamente não canta, saltam do verde e liso mar / e ferem seus olhos, lambem seus dentes, apodrecem sua boca”.
Em outros poetas incluídos na Pequena Cartografia, como a carioca Camila Vardarac, encontramos o poema em prosa de imagens rápidas, alucinadas, o discurso em jorro contínuo, que de imediato nos remetem à poesia beat e ao surrealismo; porém, há algo mais na escrita da autora, que sugere um diálogo com a estrutura comunicativa dos novos meios eletrônicos, como se palavras e frases fossem os cenários de um videoclip: “cotovelos sobre cacos de vidro retêm as palavras enquanto o / sangue foge, desenho as letras do seu nome dentro do coração / transformado em origami de caveira”. Imagens rápidas e fortes de um brutalismo que se aproxima ainda das artes visuais (lembremos aqui de Francis Bacon e do traço sombrio de quadrinhistas como Bill Sienkiewicz). Uma poeta que dialoga com o simbolismo, o surrealismo, a lírica portuguesa e os seus próprios gritos interiores é Katyuscia Carvalho, capaz de criar metáforas intensas e raras como estas: “Aprofundar interiores / Inconter silêncios / Apalpar um grito que / não terminou / amputado por alguma canção / que soou mais profunda” ou ainda “Um dia encontrarão / os fósseis rupestres / de uma saliva já extinta / virão tradutores / e ólogos e istas / capitalizarão: / (beijos cravados na rocha)”.
Ângela Castelo Branco, poeta e artista plástica, resistiu à tentação de simular paisagens na escrita, fazendo a sábia escolha de pintar o pensamento com todas as flores da fala. A sua poética é a da música do pensamento, mais irônica do que metafísica, mais fragmentária do que sistêmica, e nela recolhemos versos de alto impacto como estes: “Feito: costura de retalhos. Chão sujo de fiapos, retirar o que / não é composição. (...) / Qual o instrumento, qual o instrumento que acontece uma mulher?”
A construção minimalista, voltada ao retrato fragmentário de paisagens, objetos e sensações, mas evitando reverberações estilísticas derivadas de uma leitura ingênua da Language Poetry, está representada na poesia de Maiara Gouveia e Lucila de Jesus, poetas que elaboram artesanatos de alta densidade semântica. Em Lucila, há uma presença maior do humor, da ironia, do paradoxo e do non sense, como nestas linhas: “Os velhos e / as formigas / são invisíveis”; “O amor ansiado / é negro / branco / e amarelo”; “Tudo o que sei / sei sem saber. / Não aprendi, / só encontrei. / É que nasci / com os tendões / hiperextendidos”. Maiara, por sua vez, é mais elíptica, lacônica, não recusa os desafios da sintaxe e nos apresenta insólitas construções verbais, como esta: “escamas de peixe / medeias em fuga / cabelos vivos / no côncavo dos séculos // (a música) / de águas-medusa / guelras / ou ábaco líquido / (a mística do cálculo) / em ondas, em orlas / linhas tortas inúteis // onde o livro-transparência / arde / até os rins”.
A breve seleção de poemas organizada por Marcelo Ariel é sedutora, instigante e nos faz pensar sobre os augúrios das sibilas do apocalipse, para quem a poesia brasileira contemporânea está sempre “em crise” – estratégia de legitimação do cânone estabelecido pela negação insípida da poesia mais recente. A Escola do Ressentimento, que tanto mal faz à nossa crítica literária, é desmentida por obras inteligentes e corajosas como a de Marcelo Ariel, que nos brinda com uma feliz reunião de poetas e poemas.