quarta-feira, 30 de março de 2011

Resenha em forma de carta:


Lila, gostaria de escrever o que senti na leitura do seu livro. O livro acontece dentro de uma materialidade da memória, é como se nele a memória se convertesse em uma força intermediária, a de um sentimento de empatia tão poderoso que é capaz de nos transportar para a realidade da fala. A sua fala ali é a fala de uma narradora que se dilui sem nenhum distanciamento, é uma fala-câmara, e o tempo (os tempos) do livro são tempos de um documentário.


Me lembrei de alguns globos repórteres memoráveis que assisti nos anos 70, quando o Eduardo Coutinho trabalhava na Globo. Em você, no seu modo de narrar, também senti um modo de deixar o sentimento pensar para focar o outro que fala, que está falando, e assim o livro vai se encadeando como uma dança, entre o documental e o ensaístico, com ênfase no documental em alguns momentos e o ensaístico servindo mais como indicador de um modo de ver e de um tipo de interação que não se distancia.


A parte dos sonhos foi a que mais me emocionou (porque você sabe, nossa amizade na borda do amor e não da paixão apenas, começou com o sonho e é nele que certamente está o centro dela, com espaço entre o sentimento e os atos), pois o respeito profundo que você tem pelo sonho como fonte de conhecimento e a reverência que você consegue transmitir ao leitor, reverência por (como você diz) uma escuta que foi tão profunda, que ecoou (a palavra não é bem essa, mas não encontrei outra) ecoou dentro do seu mais íntimo, ecoou na fonte, onde a alteridade se dissolve e a comunicação atinge sua mais alta sensorialidade (também não sei se a palavra é essa).


As evocações-citações ( uma coisa que me é cara) estão lá, Ponty, Winnicott, Weil, mas elas são ( senti isso) também parte do seu mais íntimo. Digamos do seu mais íntimo-exterior-pensante, enquanto que aquela realidade, você a deixou penetrar tão fundo que chegou ao ponto delas se converterem em imagens de sonho. Entendi o titulo do livro, após a leitura, não como se a fronteira fosse uma demarcação, que separa mundos e situações, mas como se ela fosse o princípio, o ponto de partida que sempre temos de atravessar se quisermos realmente encontrar o Outro. As Casais aparecem ali como metáforas desse ponto, para mim.


E seu livro atinge, na minha leitura, o estado de matéria para uma, etnopoética do outro, pois você, enquanto uma narradora, sem o distanciamento de um pesquisador, por dentro, mas com a atenção dos pesquisadores, por fora, alcança uma atenção amalgamada com o sentimento e a vontade de estar ali e escutar. Gostei muito do livro. Foi necessário que eu ficasse sozinho com ele em uma zona neutra que não meu quarto em Cubatão e nem “a sua presença que reluz muito forte para mim”, para que conseguisse fazer uma leitura mais concentrada, como a que faço quando vejo um filme. É isso. Tentarei te ligar agora...já são meia noite e pouco...


Um beijo


Marcelo Ariel



publicado em
http://teatrofantasma.blogspot.com/2011/03/resenha-em-forma-de-carta.html

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